Em setembro de 2018 foi realizada a conferência SciELO 20 anos, na qual, durante três dias, discutiram-se amplamente “as principais questões conceituais, políticas, metodológicas e tecnológicas que definem o estado da arte da comunicação científica e as tendências e inovações que estão moldando o futuro da publicação científica aberta e as relações com os periódicos em Acesso Aberto de hoje” [I], com foco maior, claro, na rede SciELO. Essa rede (e plataforma) é provavelmente conhecida por toda a comunidade científica brasileira, bem como por parte da sociedade fora dos muros da academia. Para quem não a conhece, no entanto, o acrônimo significa, em inglês, biblioteca científica eletrônica conectada (scientific electronic library online). Em seu sítio o resumo do significado da sigla: “O Projeto tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para a preparação, armazenamento, disseminação e avaliação da produção científica em formato eletrônico” [II]. A metodologia foi e vem sendo desenvolvida, constituindo uma plataforma de acesso à produção científica. O projeto começou em 1998 com apenas 10 periódicos científicos editados no Brasil [III]. Vinte anos depois são 1.285 periódicos ativos, de 14 países. Esses números justificam o visionário do título acima na acepção “diz-se de ou indivíduo de ideias grandiosos”. A adjetivação imprescindível (“De que não se pode prescindir; essencial, indispensável, necessário.”) é o mote do resto do texto abaixo. O projeto é, consequentemente, pioneiro na produção de fonte de informação complementar à Web of Science (WoS) e Scopus, as bases de dados bibliográficas (busca de referências científicas) e bibliométricas (busca de dados de produção científica) canônicas internacionais, que se “consolidaram como fontes de referência global de indicadores bibliométricos e são utilizadas predominantemente nos estudos cientométricos e nos relatórios e metodologias de avaliação de produção científica” [IV]. É importante lembrar que a palavra avaliação tem dois significados conectados ao tema aqui: “determinar o valor de” e “compreender”, sendo que este último anda esquecido, mas será resgatado aqui. Tanto para determinar o valor, quanto para compreender, é necessário que o conjunto da produção científica seja bem representado nas bases de dados. O SciELO representa justamente o preenchimento de lacunas importantes em outras bases de dados no que se refere à produção científica brasileira (e de outros 13 países), notadamente em várias áreas do conhecimento, como as Ciências Sociais, Humanas e Agrárias, Psicologia/Psiquiatria e Economia (vide o artigo da nota IV e o de Dirce Santin e Sonia Caregnato [V]). O reconhecimento internacional da importância de que essas lacunas precisam ser preenchidas pode ser inferido da inclusão do SciELO Citation Index à plataforma WoS. Na busca de indicadores (mais para avaliar do que compreender), as citações a artigos publicados em artigos, que integram essa ou aquela base de dados, ocupa lugar de destaque, como já discutido nesse espaço em outros momentos ou pelo artigo de Rogério Mugnaini e colaboradores aqui citado. Mas qual seria esse indicador para a palavra SciELO em si? Uma busca por essa sigla em artigos indexados na coleção principal da WoS, fornece 2.249 resultados, que mencionam a nossa base explicitamente nos títulos, resumos ou palavras-chave em documentos indexados. Uma verificação por amostragem revela sua importância, pois é mencionada mais de 2.000 vezes como fonte de dados (junto com outras bases) para as pesquisas relatadas. Interessante também é a constatação de que SciELO aparece explicitamente no título de 46 artigos: SciELO como objeto de interesse científico. Na WoS pode-se ainda vasculhar os artigos que citam os artigos que se debruçam sobre esse projeto brasileiro e, como isso, encontrar pistas para compreender (lembrando essa acepção da palavra avaliar) sua importância. Detenho-me em um desses artigos, principalmente pelo título e por já ter compartilhado uma garrafa de vinho com um dos coautores. O título em questão é: “Porque pesquisadores publicam em periódicos dominantes (mainstream): treinamento, pontes de conhecimento e preenchimento de lacunas” [VI]. A primeira razão, treinamento, refere-se ao espaço de iniciação à autoria científica, mas detenho-me nas outras duas motivações. Pontes de conhecimento (knowledge bridging) proveem conexões entre a literatura científica dominante e as comunidades científicas com pouco acesso a ela. Preenchimento de lacunas (knowledge gap-fillling) refere-se à publicação de pesquisas em temas não cobertos pelos periódicos dominantes. Programas complementares como o SciELO exercem exatamente esse papel fundamental. Outro adjetivo fundamental que aparece no parágrafo anterior é dominante. Qual é o principal indicador para estabelecer o território da dominação? Há cerca de quarenta anos foi criado o fator de impacto de periódicos para orientar bibliotecários na escolha de assinaturas de periódicos, mas de lá para cá passou a ser usado na avaliação de programas de pós-graduação e de pesquisadores individuais. Esse fator de impacto (para um dado ano) de um certo periódico é o número de citações dadas no ano em questão a artigos desse periódico publicados nos dois anos anteriores, dividido pelo número total de artigos publicados nessa revista nesses mesmos dois anos. Existem cinco falhas importantes nessa medida, apontados por Cassidy Sugimoto e Vincent Lariviere e que são discutidos no Nature index [VII]. Em primeiro lugar, manutenção pelas revistas de front matter (editoriais, cartas, artigos de opinião) como documentos citáveis. Esses textos não são artigos científicos, mas tem grande repercussão, inflacionando assim o fator de impacto das revistas que os publicam. Essa falha é seguida de outras: a janela temporal estreita (apenas dois anos, intervalo no qual apenas artigos sobre temas da moda são mais citados) [VIII]; poucos artigos são realmente muito citados, mesmo para revistas de “altíssimo” impacto; grande diferença entre periódicos de áreas diferentes (e culturas de citação diferentes) e a inflação generalizada desse fator ao longo do tempo. Com todos esses problemas é questionável o uso desse indicador na estratificação dos periódicos, como no caso do Qualis da CAPES. E essa estratificação norteia a publicação dos pesquisadores brasileiros, pois assim seus programas de pós-graduação e suas carreiras são avaliadas. Os mesmos Sugimoto e Lariviere [IX], no livro “Measuring Science: what every one needs to know”, chamam a atenção aos potenciais problemas em “tornar o capital gerado (pela publicação científica) mais importante do que a ciência em si” [X]. Fator de impacto e outros indicadores estão na sustentação de uma narrativa de excelência, que apresenta claros sinais de exaustão e precisa ser substituída por outras narrativas. Uma boa sugestão veio de Fernanda Beigel, que participou do painel “Impacto científico/acadêmico dos periódicos – indicadores baseados em citações e outros” [XI] durante a conferência SciELO 20 e que tive o privilégio de coordenar. A sua apresentação intitulava-se: “o deslocamento de impacto para circulação”. É um belo deslocamento e o SciELO é um promotor dessa circulação de conhecimento e ideias. Além de citações, apenas uma métrica de uso do conhecimento científico, os acessos aos artigos indicam outros possíveis usos [XII]: Os periódicos brasileiros da base SciELO foram acessados 800 milhões de vezes nos últimos três anos, mais de 700 mil vezes por dia (incluídos sábados, domingos e feriados na conta). Somando-se os periódicos dos outros 13 países, esse número ultrapassa a marca de um milhão de acessos diários. Pensando na construção de novas narrativas e novas cores para o capital gerado pela ciência, a conferência SciELO 20 abriu com um painel que lembrou valores fundamentais para ter em mente; vejamos o título: “Conhecimento científico como bem público global. O futuro da comunicação da pesquisa. SciELO como bem público global”. O primeiro dia do encontro fechou com o painel “O impacto político e social dos periódicos e das pesquisas que comunicam”. Os números de acessos e a capilaridade da rede SciELO carregam fortes indícios de ciência como bem público e de impacto social da comunicação da ciência. Uma comunidade científica não pode se considerar madura se não desenvolver um ambiente consistente de edição e circulação do conhecimento, voltado ao acesso aberto, e conectando-o internacionalmente. Em resumo, voltando à avaliação em ambos sentidos, a SciELO é imprescindível. |